A palavra é o que fica

por Fal Azevedo

Eu sei que é preciso vencer
Eu sei que é preciso brigar
Eu sei que é preciso morrer
E eu sei que é preciso matar

É um tempo de guerra

É um tempo sem sol

Da canção Eu vivo num tempo de guerra,

de Guarnieri e Edu Lobo

O casal Guarnieri, ele, maestro, ela, harpista, não gostava nadinha das propostas fascistas do governo da Itália na década de 1930. Um pouco alarmados, um tanto apavorados (aliás, em quase todas as situações da vida, quem declara “Não sinto medo”, ou é bobo-alegre ou é filho do rei. O medo mantém a gente vivo e quicando, amigos), pegaram o filhinho de dois anos e rumaram para no Brasil, em 1936. No que fizeram muitíssimo bem.

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Este se revelou um texto muito difícil de fazer.

Eu me arrastei por mais de um mês. Atrasei o lançamento do Drops em Revista, deixei os gentis-patrocinadores da Guilda do Drops na mão, enervei a Suzi Márcia como poucas vezes Suzi Márcia foi enervada e não dei conta desse trem.

Ah, e veja bem, fui eu que escolhi o tema. Escolhi Gianfrancesco Guarnieri como tema da revista. Vi um documentário maravilhoso sobre ele no Canal Curta, e achei que esse cara seria uma grande personagem. Eu-que-quis. Ainda assim, que inferno fazer esse texto.

Daí que fiz o que sempre faço: tergiversei. Daí que danei a me perguntar: por que tão difícil falar do velho Guarnieri, Fal?

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O colégio carioca Santo Antônio Maria Zacarias não estava lá para lidar com aluno subversivo. Quando o aluno Gianfrancesco – nascido em Milão, em 1934, mas brasileiro por adoção desde os dois anos e alfabetizado em português – escreveu uma peça falando mal do vice-reitor da escola, foi expulso. Nem o padre que cuidava do teatro da escola pôde protegê-lo. Gianfrancesco aprendeu cedo que pagamos um preço por cada palavra. Sombras do Passado foi um tremendo sucesso e alunos de todos os anos aplaudiram e gritaram o nome do vice-reitor durante o espetáculo. A produção, em sua breve temporada, deixou saudades.

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Botei um espumante no freezer. Escrever de fogo talvez seja um caminho.

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Escrevo e encho a cara ao mesmo tempo. Se dava certo pro Hemingway, dará certo para mim. (eu sei, eu sei, me deixe)

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Gianfrancesco escolheu continuar a escrever e, apesar de se meter com política estudantil – foi presidente da Associação Metropolitana dos Estudantes Secundários –, em vez de seguir carreira política, resolveu se concentrar nas palavras.

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Hoje é dia das mães e escrevo aqui na sala, com minha mãe fazendo comentários pouco elogiosos ao governo, aos animais que apoiam esse governo desastroso, a ministros e ex-ministros e penso, de novo, na vida da minha personagem. O que diria Guarnieri do mundo em que vivemos? Ele estaria com nojo, permitam-me arriscar. Nojo do presidente e da presidência, nojo dos relativistas das mortes, nojo de quem não uivou com as mortes de Aldir e do Migliaccio e do Santana e da Lúcidi e dos outros mais de onze mil mortos (até agora, leitor, até agora). Ele estaria horrorizado com os caras de direita que não respeitam o isolamento social – que não passa duma invenção para reinstalar o comunismo no Brasil (???) –  e da classe média de esquerda, muito ciosa dos perigos da pandemia, que quebra o isolamento a cada dois dias pra viver aventuras essenciais, tipo andar de bicicleta por Ipanema, visitar a madrinha, comprar aquela massinha que só tem naquela rotisserie-que-não-faz-entrega, sabe, naquela ruazinha fofa porque afinal estamos do lado dos bons. Guarnieri, quero crer, cuspiria em todos nós. Ou, melhor ainda, faria uma peça foda, achincalhando geral.

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Não me parece possível encontrar um ponto onde se diga “Aqui, bem aqui, Gianfrancesco optou pela arte popular. Ele optou, neste momento, falar do povo e suas dores, do povo e suas vivências, do povo e da vida do povo. Era um menino de classe média que não se escondeu atrás do discurso, ainda em voga, nós os italianos. Menino europeu, filho de maestro e harpista, que poderia tranquilamente vestir a capa do italianinho que vê graça no cotidiano dos trópicos, mas não foi isso que fez Gianfrancesco. Ele desde cedo que identificou fortemente com a classe operária e a transformou em sua principal bandeira.

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Quando se trata de um autor da grandeza de Guarnieri, é injusto destacar só uma obra do cara, afinal, são tantas grandes obras. Por outro lado, é injusto citar O jardim do diabo, quando se fala de Luis Fernando Verissimo, ou Anarquistas graças a Deus, quando se fala de Zelia Gattai? Ou será que escolher uma, entre uma porção de obras genais, é também um gesto de amor? A tentativa honesta, ainda que reducionista, de condensar o que um autor que amamos tem de melhor?

Enfim, quando tratamos da obra de Guarnieri, é difícil, demais mesmo, escolher. Mas se você pedisse e só porque você pediu, sempre elegerei Eles não usam black-tie como a melhor coisa, dentre tantas tão boas, que o velho escreveu.

Nessa peça, temos um operário em cena. Pela primeira vez, o teatro brasileiro tem um cara pobre, não caricato, em cena. E ele sofre e briga com o pai e descobre que vai ser pai também e perde e se frustra e oscila entre dois polos bem na frente do público que, usando seus melhores vestidos e sapatos, nunca tinha visto nada parecido. Palavras como “patrão” e “greve” e sindicato” explodem em cena e, quando nos damos conta, estamos ali testemunhando mais conflitos de classe do que conflitos românticos. É uma obra enorme, ainda mais se tivermos em mente a época em que foi pensada, escrita e posta nos palcos, por um menino de 22, 23 anos. Mas sua grandeza independe da época ou da idade do autor. Ela é importante porque fala dum pedaço suro e lindo da nossa história, dum jeito suro e lindo. Guarnieri capturou o espírito de sua época em falas, atitudes e fez isso alicerçado em diálogos muito bem estruturados e numa sequência de acontecimentos de gelar a espinha e de deixar boquiaberto qualquer professor de literatura, crítico ou escritora apaixonada por ele, seja lá em que época for.

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A peça, Eles não usam black-tie, contava com elenco formado por Leia Abramo, Eugênio Kusnet, Guarnieri, Riva Nimitz, Miriam Mehler, Milton Gonçalves, Flávio Migliaccio e Chico de Assis. A direção foi de José Renato. O texto é incrível, mas vamos combinar: difícil não dar certo com esse elenco.

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Gianfrancesco dizia que entender o mundo se dá de duas formas: pelos olhos de quem domina ou de quem é dominado.

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Leio os planos da amiga-da-amiga de reunir, hoje mesmo, três gerações da família num almocinho, “afinal não nos vemos há trinta e cinco dias”. Minha filha, isso não é um almoço de dia das mães, é um pacto de suicídio.

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Todo comunista e fazia novela, o Guarnieri? Pois. Fazia. Para além das contas a pagar, Guarnieri acreditava que o povo merecia diversão. Entretenimento. Fantasia. Fuga. Fazia novela, sim, como quem faz um menino rir, uma senhora dar uma fungadela numa cena muito sentida, um cara sonhar com mundos outros. Ele era um grande ator, cheio de recursos, autodidata e feroz em seu próprio método (o arrepio de Gianfrancesco à academia, mesmo reconhecendo seus méritos e valor, de alguma forma nos aproxima ainda mais).

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O povo que ele queria que risse e sonhasse está sendo dizimado, espremido entre um governo acéfalo, feito de e para imbecis, negacionistas burros, negacionistas imbecis e negacionistas burros and imbecis, que pra mal dos nossos pecados inda se acham grandes analistas da realidade brasileira. Hoje é domingo e temos mais de onze mil mortos pelo Covid-19, vírus que o brasileiro batizou de Coronga. Guarnieri adoraria o apelido. Aliás, meu pai também.

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Gianfrancesco veio para São Paulo em 1952, aos dezoito anos, porque já sabia que não teria opção além de ser ator e escritor. Ajudou a fundar o Teatro Paulista do Estudante, uma companhia teatral que, em 1955, fundiu-se com outra companhia, o Teatro de Arena. Sob esse nome, a companhia definiu os rumos do novo teatro brasileiro e fez frente ao regime militar com grande dignidade.

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“A gente tem de ser firme”, me diz a Andréa Natal, querida demais. Gianfrancesco concordaria com ela.

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Em 1956, a montagem da peça Eles não usam black-tie, apresenta ao público de São Paulo, e depois do Brasil, à persona que Gianfrancesco cultivaria por toda a vida: o intelectual de esquerda. Mais ou menos malvestido, mais ou menos impaciente, profundamente humano, ligado às causas sociais, aliás, atuante nas causas sociais, e sempre com um Hollywood no bico.  

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Camisa social de listras, xadrez ou com estampas malucas, calça social vincada, usada com cinto, meia fina e sapato. Às vezes, um terno mal-ajambrado. Cigarro numa das mãos, sempre gesticulando. Voz rouca (o que aconteceu com os homens de voz rouca?). Olho no olho do interlocutor, certezas. Alguns palavrões. Risadas. Biritas até o porrezinho suave. Cabelo penteado para trás. A estética dos anos 1950/1970, a fumaça do cigarro, as discussões. Tudo isso fala demais ao meu coração, o que só me faz gamar mais em Guarnieri.

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A linguagem que permeia a obra de Guarnieri é realista. É direta, é a língua que se fala nas ruas. Guarnieri se preocupa, e muito, em ser entendido. Em alcançar as pessoas nos morros e nos botecos, nas salas de aula, nos sofás de veludo, nos bancos das praças. Guarnieri não inventa um Brasil, ele apenas o encara e registra.
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Eu disse pro meu amigo Char que a palavra dos dias, para mim, tem sido “ignorância”. A incontornável, imposta pela vida, pelos meios e a opcional. Daí ele me disse que não existe ignorância opcional, que isso é só calhordice.

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Guarnieri, mais maduro, fazia o papel do velho bonzinho. Sempre. Ele dizia que era o escolhido para viver qualquer senhor romântico e bonachão nas novelas, mas não parecia ressentido. Ria disso.

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Aqui na nossa rua, onde antes funcionava o consultório do psiquiatra marreta, agora vive uma senhora que faz refeições para uma empresa. O cheiro que toma o Brócolis, nosso querido bairro, é de fazer chorar. Domingo, fim de tarde, ela está a todo vapor, fazendo um peixe dos deuses e testando a minha falta de fé.

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Filho de músicos, Guarnieri adorava orquestras e amava o Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Foi um menino encantado com o maquinário que mantinha as peças em cena.  Em uma entrevista para o programa da TV Cultura, o Roda Viva, contou que, muito pequeno, não podia assistir da plateia as apresentações da orquestra regida por seu pai, o maestro, Edoardo Guarnieri. Por isso, ficava em pé no fosso da orquestra sobre uma caixa de instrumento, acompanhando as óperas.

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O universo dos operários, dos trabalhadores, das pessoas comuns que limpavam casas e faziam carros. Esse era o universo que Guarnieri queria imortalizar e que perseguiu por toda sua carreira de dramaturgo, em peças como A semente, Gimba, Marta Saré.

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Entrevista do ex-ministro da Saúde na tevê e, pelas bochechas, Mandetta está quarentenando aqui em casa. Temos nada menos de cinco bolos deliciosos disponíveis para nossa alegria.

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Será que está difícil falar de Guarnieri porque ele é dolorosamente parecido com meu finado pai? Vamos garrar na mão de Freud. Sim, ele é. Mesma geração, mesmas referências literárias (pelo que pude ler sobre o velho Gianfrancesco), bom de copo, bom de garfo, dentes ruins (não péssimos, mas certamente não os teclados de hoje em dia), corte de cabelo horroroso, bigode padrão anos 1970, voz meio suja de cigarro e birita, bom pai, pai foda (ser filho de homens geniais é muito duro, muito mesmo), algo impaciente, algo bondoso, vaidoso demais e ciente de suas próprias qualidades e talentos.

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Guarnieri gostava da dramaturgia por sua permanência. Dizia que o que fica da produção teatral é a palavra.

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Até 1972, quando chega ao fim a companhia Teatro de Arena, Guarnieri esteve lá. A cada montagem. Escrevendo e atuando e repensando um país que, algumas décadas depois, saudaria um bando de analfabetos funcionais como seus salvadores. O Brasil não mereceu a vida e a arte Guarnieri, músico, ator e dramaturgo premiado. Nunca mereceu seu esforço, sua abnegação. Nós, você e eu, não merecemos. Sou feliz por tê-lo e me sinto privilegiada por contar com sua obra no meu repertório, mas olha, que desperdício de talento.

Fal Azevedo, 49 anos, é editora da Drops em Revista e autora dos melhores risotos do território nacional.

4 comentários em “A palavra é o que fica”

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